Contra o futebol moderno
Estamos no dia 26 de Fevereiro de 2006 e o Futebol Clube do Porto SAD joga agora com o Sport Lisboa e Benfica SAD (a moda das SAD's já pegou há muito tempo) no Estádio da Luz (que brevemente passará a Estádio Siemens ou coisa do género) para a Liga BetandWin (o nosso velhinho campeonato foi comprado por um site de apostas). É um Domingo à noite (lá se vai o trabalho na manhã seguinte) e o jogo dá num canal privado (a Sporttv, que entretanto nos roubou os fins-de-semana de futebol a horas decentes). Paguei 25 euros pelo bilhete e vou para a Bancada Coca Cola ver o jogo (agora é assim, vendem as nossas bancadas). Ao meu lado desapareceram as personagens do costume: o senhor já não está lá porque não arranjou bilhete (o dele foi para um patrocinador qualquer), a senhora já não leva essa camisola porque o marido entretanto vai-lhe dando uma camisola diferente todos os anos e os pequenitos já não existem porque para lá estarem tinham que pagar 25 euros como eu. Todos em cima uns dos outros (porque os torniquetes electrónicos não resolveram nada), sem rádio e com os olhos pregados em jogadores que vestem a camisola por dinheiro.
Havemos de estar num dia qualquer de 2013 e o Futebol Clube do Porto SAD e Pepsi (a Pepsi comprou o nosso clube e o nosso presidente é um americano) vai defrontar o Sport Lisboa e Benfica SAD e Montepio (o banco comprou o Benfica e o presidente é um doutorado em economia) no Estádio Singer (das Antas ninguém se lembra e o Dragão não dava dinheiro pelo nome) para a Liga Ruskovich (um russo que comprou o nosso campeonato). É uma segunda às 21.30 e a partida dá em 3 canais particulares. Paguei 50 euros e vou para a Bancada Vodafone ver o jogo (a minha cadeira chama-se Sagres e não consigo estar nela de pé). Ao meu lado tenho as novas personagens: o patrocinador x, o patrocinador y e o patrocinador z. Já ninguém se levanta porque o detrás quer ver o jogo, já não se discutem tácticas porque já ninguém sabe o que isso é, já não há rádios porque as pilhas não podem entrar (em compensação temos um shopping dentro do próprio estádio que nos vende pilhas a 25 euros), já não se insultam os adversários porque a Pepsi e o Montepio têm um acordo e já não sabemos o nome dos nossos jogadores (lembramo-nos que um veio do Brasil num acordo da PT com a Telefónica e que o nosso craque foi roubado ao rival através de um grande truque de marketing). O azul e o vermelho das camisolas mal se vêem tal é a quantidade de publicidade. Os símbolos foram trocados por uma garrafa de Pepsi e um cheque do Montepio.
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Estávamos no dia 22 de Setembro de 2001 e o Futebol Clube do Porto SAD ia defrontar o Vitória Futebol Clube de Setúbal no Estádio das Antas para a Primeira Liga. Era um Sábado às 17.30. O jogo não dava na televisão. Paguei 5 euros pelo meu bilhete e fui para a Superior Sul. Estava nos Super Dragões. Canto, salto, levanto estandartes, abano bandeiras, coloco faixas, pinto frases, ouço os bombos (um dia abri tochas e fumos à vontade mas isto já proibiram). O estádio tinha gente e lá estávamos nós: os Super, o Colectivo, os Furacões Sadinos e o VIII Exército. O ambiente era controlado por nós e havia mentalidade. Os jogadores ouviam-nos e agradeciam-nos o apoio no final. Nós éramos o futebol.
Estamos no dia 10 de Março de 2006 e o Futebol Clube do Porto SAD joga com o Vitória Futebol Clube SAD no Estádio do Bonfim (um dos resistentes da Euromania) para a Liga BetandWin. É uma sexta e são 21.30(!). O jogo dá na Sporttv. Paguei 20 euros (graças a um dos poucos acordos que ainda há com as claques) e não me queixo porque até nem é mau. Estou entre os Super Dragões e o Colectivo. No Porto a direcção cortou-nos o apoio e prefere dar bilhetes aos patrocinadores do que a nós; o Vitória está afundado em dívidas graças a uma direcção que só está preocupada em meter dinheiro para o bolso.
Canto e salto à vontade (o estádio é dos únicos que ainda tem cimento), discuto com a polícia à entrada porque não querem deixar entrar os tubos dos estandartes e das bandeiras, coloco as faixas no chão (porque no muro tapavam a publicidade), pinto frases que não entram (ao abrigo de uma lei que nos tira a liberdade) ou que nos são arrancadas lá dentro e ouço o único bombo que nos deixaram levar. O estádio está quase vazio, nós continuamos lá todos. Mas há pouca mentalidade. O ambiente é só nosso, porque o resto já desistiu deste futebol. Os jogadores ouvem-nos mas poucos são os que nos agradecem. Nós somos o que resta do futebol.
Havemos de estar num dia qualquer de 2011 e o Futebol Clube do Porto SAD não vai defrontar o Vitória Futebol Clube SAD porque este último acabou. Tal como o Salgueiros, o Farense e o Campomaiorense. Tal como o Alverca, o Estoril, a Ovarense e muitos outros. O estádio do Bonfim é agora o palco do Rock in Rio&Fanta e o campeonato está reduzido às 10 equipas sobreviventes (que se aguentaram graças aos patrocinadores que por sua vez agora mandam no clube). Já não há Super Dragões nem Colectivo (uma nova lei proibiu a existência de claques). Ninguém canta nem salta. Não há estandartes, bandeiras, faixas, frases ou bombos. Aliás, não há ninguém. Não há ambiente, não há nada. Há 22 jogadores a lutarem por dinheiro. O futebol morreu e a mentalidade também.
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Estávamos nos anos 90 e o futebol era amor, fé e crença. As claques eram isso tudo levado ao extremo, mais a loucura e a rebeldia.
Estamos na 1ª década do século XXI e o futebol são interesses, dinheiro e corrupção. Começam a tirar-nos o amor, a fé a crença quando nos tiram o bilhete para o dar a um patrocinador. Já nos tiraram a loucura e a rebeldia quando deixámos de nos insurgir contra quem nos roubou a liberdade.
Havemos de estar na 2ª década deste século e o futebol não passa de uma estratégia de marketing. Não há amor, fé e crença. Não há Ultras.
É isto que queremos?